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A história do acolhimento no Brasil

No Brasil, a institucionalização de crianças e adolescentes começa durante a colonização. Reflexo do modelo europeu, a Igreja Católica assume o cuidado de bebês e crianças (órfãos ou abandonados). No século XVIII, os recém-nascidos eram deixados de forma anônima nas “rodas dos expostos” – mecanismos giratórios instalados nas paredes das Santas Casas de Misericórdia. As crianças tinham pouca ou nenhuma convivência comunitária, eram completamente afastadas da família de origem e dificilmente retornavam ao convívio familiar.

No fim do século XIX, os educandários, reformatórios, internatos e orfanatos atendiam um grande número de crianças e adolescentes separados por sexo e por idade. Todas as atividades aconteciam no local e os acolhidos não circulavam em espaços comunitários de educação, saúde, lazer e profissionalização. A principal tarefa dessas instituições era a de “corrigir e controlar” filhos de adultos pobres considerados “incapazes” de educar.

Novos Paradigmas

Já no século XX, enquanto mudanças significativas ocorriam no panorama internacional, como a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança adotada pela Liga das Nações Unidas (1924) e a Declaração Universal dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (1959), o Brasil aprovava o primeiro Código de Menores, de 1927 – em vigor até a sanção de um segundo, em 1979, com a Lei nº 6.697.

Na legislação, aparece pela primeira vez o termo “menor em situação irregular” para tratar do menor de 18 anos abandonado materialmente; vítima de maus-tratos; em perigo moral; desassistido juridicamente; com desvio de conduta ou autor de infração penal. O principal problema do código é que ele não diferenciava o menor infrator daquele que era vítima da pobreza, do abandono e dos maus-tratos.

O grande marco veio em 1988 com a aprovação da Constituição da República Federativa do Brasil, na qual crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, sem nenhuma forma de distinção. A Doutrina da Proteção Integral foi materializada no artigo 227 da CF: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Na década de 1990, novas legislações priorizaram a infância no Brasil com a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA inovou ao determinar prioridade absoluta no orçamento público para a implementação de políticas públicas em prol das crianças e adolescentes. Ao longo dos anos, a porcentagem orçamentária foi ampliada, porém, as determinações do ECA ao apresentar um novo formato para a política de atendimento à infância e juventude não estão totalmente implementadas até os dias atuais.

Sistemas de Proteção

A partir de 1999, começa a ser construído um amplo Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente com o objetivo de efetivar a proteção em todas as dimensões. Nesse contexto, iniciativas de acolhimento em família acolhedora começam a surgir, mas passam a ganhar força apenas em meados dos anos 2000.

Em 2001, uma caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados visitou serviços de acolhimento institucional em oito estados e no Distrito Federal para verificar a difícil realidade vivida nos espaços, com flagrante desrespeito ao direito à convivência familiar e comunitária e aos princípios elencados no ECA.

No ano seguinte, o Colóquio Técnico sobre a Rede Nacional de Abrigos – que reuniu representantes do poder público, da sociedade civil e do UNICEF – estimulou uma pesquisa nacional sobre crianças e adolescentes em serviços de acolhimento. Com recursos do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) analisa 589 abrigos, com mais de 19 mil crianças e adolescentes.

A pesquisa foi um divisor de águas. Os resultados mostraram que a maioria das crianças e adolescentes, embora tivessem família – não sendo, portanto, órfãos ou abandonados – permanecia em acolhimento institucional muitos anos. E os principais motivos para o acolhimento estavam relacionados à pobreza, uma grave violação de direitos, pois, segundo a CF/88 (artigos 226 e 227) e o ECA, nenhuma criança pode ser retirada de uma família por pobreza.

Em 2005, durante o II Colóquio Internacional de Acolhimento Familiar, ocorrido em Campinas (SP), nasce o Grupo de Trabalho Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, por iniciativa da Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH), em conjunto com o UNICEF, com parceria com o então Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a então Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH). O GT foi criado com os objetivos de aprofundar as discussões relativas ao direito à convivência familiar e comunitária, e difundir experiências inovadoras e modalidades diferenciadas de acolhimento, como o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA).

A partir de encontros realizados pelo GT em diversas regiões do país, surge um movimento nacional que possibilita um intenso intercâmbio entre especialistas brasileiros para a promoção e engajamento de atores locais, criando um efeito multiplicador. A movimentação culmina no lançamento, em 2006, do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.

O Plano prioriza a convivência familiar e comunitária, incentivando a formulação e implementação de políticas públicas que assegurem esse direito, constituindo um marco para o enfrentamento à cultura de institucionalização de crianças e adolescentes no país, com ênfase em três áreas temáticas:

  • Políticas de apoio à família e prevenção da ruptura de vínculos;
  • Reordenamento do acolhimento institucional e implementação de novas modalidades de acolhimento, com destaque para famílias acolhedoras;
  • Adoção centrada no interesse da criança e do adolescente.

Instituto Jurídico

Em 2009, uma grande vitória: o ECA é modificado e inclui, pela primeira vez, o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora como um instituto jurídico. Em seguida, o então MDS e a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), realizam o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento. O estudo identifica 144 Serviços em Família Acolhedora, com 932 crianças e adolescentes acolhidos, representando apenas 2,5% das 36.929 crianças e adolescentes acolhidos em 2.624 unidades de acolhimento institucional.

Desde 2012, as informações são monitoradas anualmente, por meio do Censo SUAS (Sistema Único de Assistência Social). O dado mais recente disponível (2019), indica que há atualmente 381 SFAs, com 1.535 crianças e adolescentes acolhidos (equivalente a 4,9% do total de crianças e adolescentes acolhidos – 29.998 se encontram em 2.801 serviços de acolhimento institucional).

Coalizão

Em julho de 2020, especialistas de diversos setores do país se unem para criar a Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora, que tem como meta a ampliação do acolhimento em família acolhedora dos então 4% para 20%. A Coalizão é formada por atores governamentais e não governamentais que buscam, juntos, formular e implementar estratégias capazes de elevar esses números rumo a uma realidade em que a priorização de atendimentos em família acolhedora, já prevista em lei, torne-se prática no Brasil.

Linha do Tempo

Marcos temporais do Acolhimento Familiar no Brasil1988 – Promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil.

1990 – Criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

2001 – Caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados identifica realidade das instituições de acolhimento brasileiras.

2002/2003 – Colóquio Técnico sobre a Rede Nacional de Abrigos estimula pesquisa do IPEA sobre a realidade das crianças e adolescentes em Serviços de Acolhimento.

2004 – Criação da Política Nacional de Assistência Social.

2005 – Criação do Sistema Único de Assistência Social.

2005 – Organização do Grupo de Trabalho Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária.

2006 – Lançamento do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.

2009 – Inclusão do instituto jurídico “Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora” no Estatuto da Criança e do Adolescente.

2009 – Pesquisa da FioCruz promove o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento.

2012 – Início da realização do Censo SUAS. O monitoramento passa a ser anual.

2020 – Criação da Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora

Eventos que ampliaram a reflexão sobre o tema no Brasil

2003

  • Conferência Internacional de Famílias Acolhedoras – La Plata (Argentina)
  • Seminário Proteção da Criança e do Adolescente em famílias acolhedoras, Campinas (SP)

2004

  • 1º Colóquio Internacional sobre Acolhimento Familiar, Rio de Janeiro (RJ)
  • Congresso Internacional – Família Guardiã, São Paulo (SP)
  • 1º Fórum Latino-Americano de Acolhimento Familiar, Buenos Aires (Argentina)
  • Conversas reflexivas sobre o Acolhimento Familiar – A experiência francesa, Campinas (SP)

2005

  • 2º Fórum Latino-Americano de Acolhimento Familiar, Foz do Iguaçu (PR)
  • 2º Colóquio Internacional sobre Acolhimento Familiar, Campinas (SP)
  • 1º Encontro do GT Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, Campinas (SP)

2006

  • Encontros do GT Nacional no Pará, Pernambuco, Maranhão, Bahia e Rio Grande do Sul
  • 1º Seminário Catarinense sobre Acolhimento Familiar, São Bento do Sul (SC)

2007

  • Encontros do GT Nacional no Ceará, Minas Gerais, Espírito Santo e Distrito Federal
  • 2º Seminário Catarinense sobre Acolhimento Familiar, Chapecó (SC)
  • Eventos de reorganização dos Programas de Famílias Acolhedoras em Minas Gerais

2014

  • III Colóquio Internacional sobre Acolhimento Familiar, Campinas (SP)

2019

  • Seminário Internacional da Relaf “Pelo direito de viver em família e na comunidade”, Salvador (BA)
  • III Seminário Internacional de Acolhimento Familiar, Campinas (SP)

Aproveite para assistir ao vídeo “A construção de uma Política Pública (parte1)”:

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